O terror tarda mas não falha

Chegou!

Estava achando estranhíssimo que as histórias de terror sobre as bicicletas do Itaú não tinham chegado ainda. Mas chegaram. Estão finalmente ocupando redes sociais e se infiltrando nas conversas de Natal, nos encontros familiares, nas histórias terríveis de prontos-socorros, o horror do trânsito é novamente tema de interesse para a nossa sociedade. Parecem um pouco as histórias dos perigos da escada rolante. E sob que viés? A partir de qual perspectiva?

“É um absurdo que disponinibilizem bicicletas sem a devida informação sobre como transitar!”, “é muito perigoso, para quem nunca andou, sair andando de bicicleta”, “andar de bicicleta é muito perigoso”.

Normalmente o sujeito das frases é o ciclista. Ou a bicicleta. Que está normalmente colocando a si mesmo em risco se expondo a “competir” por espaço com os carros. Um velho discurso renovado com um patrocínio que foi feito pra você. Discursos que parecem um pouco com outros interessantes sobre a menina que vestiu uma saia curta demais e aí… O que ela esperava que acontecesse?

Só para deixar tudo mais legal, pela primeira vez colidi com um carro “de passeio”, esses dias. Foi chegando na Barra, o semáforo tinha acabado de ficar verde para nós, veículos, e os carros retomavam o deslocamento. Sem sinalizar – ou sinalizando tarde demais, porque eu não vi – um carro branco não muito caro virou à direita quando eu seguia em frente. O retrovisor encostou no meu braço, e logo depois a quina dianteira, logo acima do farol dianteiro direito, bateu em minha perna, jogando a bicicleta um pouco para a direita. Foi quando o motorista percebeu e parou. Não perdi o equilíbrio, não caí. Ouvi um grito. Não entendi de novo do que se tratava.

Em um segundo e meio de reflexão pensei: estou atrasado. O motorista certamente achará que está certo. Eu estou de cabeça quente e dificilmente vou conseguir usar os meus melhores argumentos da melhor forma. Não aconteceu nada comigo. O susto já vai ser suficiente para ele pensar no assunto.

Decidi seguir meu caminho sem nem olhar para trás. Não sei se foi a melhor decisão.

Mas se eu tivesse ficado e se fosse possível travar diálogo com o motorista eu explicaria a ele o seguinte. Antes de mais nada eu estava fazendo tudo em pleno acordo com a lei, da melhor maneira, como faço em 99% dos casos em que estou pedalando. À direita, no “bordo da pista de rolamento”, com uma sinalização adequada, buzina, e estava, inclusive, de capacete (que a lei não obriga, mas enfim, estava lá). Como ele estava à direita da pista, não achou que seria necessário checar o retrovisor direito. Como ele não estava sinalizando que viraria à direita, não senti a necessidade de buzinar para alertar a minha passagem (sim, a preferência é minha, também). Simplesmente passei. Pelo posicionamento e ausência de sinalização dele, ele seguiria em frente e nada teria acontecido. Se algo tivesse me acontecido seria, também, obrigação dele prestar auxílio para que eu fosse atendido.

O sujeito deste acidente é o motorista. Ele, certamente acostumado a lidar apenas com carros, não me viu. Tampouco sinalizou. Eu não me coloquei em risco. Ele me colocou em risco. Nós temos uma quantidade aberrante de péssimos motoristas. Que se permitem ser péssimos motoristas porque os órgãos fiscalizadores fazem também um péssimo trabalho. Veja como (quase) todo mundo faz tudo direitinho na hora de embarcar num avião. Porque se fizer errado é punido ou sequer embarca. Porque o sistema é de fato rígido. Porque pode pôr centenas de pessoas em risco. E é preciso ser levado a sério.

Trânsito nas cidades e estradas também. Igualzinho.

Então eu não vou ser abestalhado de achar que é uma questão “do brasileiro” (eu leio fóruns sobre ciclistas do mundo todo, essas questões estão em todo lugar), ou uma questão do “motorista baiano”. Como se na nossa cultura, tão forte quanto o dendê e a capoeira regional, estivesse o fato de ser mau motorista. Não é. É tão somente uma questão de seriedade do poder público. Rigor na aplicação da fiscalização e aplicação das leis. Apenas. Foi assim que começamos a usar cinto de segurança (campanha séria de médio prazo e fiscalização) foi assim que deixamos de fumar em locais fechados (campanha séria de médio prazo e fiscalização), e foi por falta desse rigor que voltamos a furar sinal vermelho loucamente a qualquer hora do dia ou da noite.

O perigo sempre vai existir.

Como dirige um motorista que acabou de aprender? No limite da velocidade, na Paralela, fazendo meia-embreagem na Av. Princesa Isabel? Ou começa andando com cautela e cuidado nas vias mais tranquilas até adquirir confiança e segurança e entendimento do funcionamento real do trânsito e do automóvel? Porque um novo ciclista faria diferente? E, em fazendo diferente, como isso pode ser responsabilidade de qualquer outra pessoa que não do próprio ciclista?

Está certo que o site do Bike Salvador poderia ter um resumo das regras mais importantes, como “não é permitido pedalar nas calçadas”, “não é permitido andar pela contra-mão”, etc., mas isso não tira a responsabilidade de quem usa. Porque alguém que não sabe como funciona um aparelho qualquer vai usá-lo sem se informar do seu uso devido? Furadeira, microondas, cortador de grama, bota na internet procura a forma adequada de usar, pergunta a quem sabe. O cidadão é um bebê?

E por fim, houvesse qualquer fiscalização, não seria preciso sequer ter essa conversa. Em qualquer país que adota de fato uma política pública voltada para a bicicleta – e não apenas medidas pontuais desarticuladas, como é no Brasil – o departamento de trânsito sabe quais são as regras do uso de bicicleta na via pública e advertirá aquele que fizer errado. Bastaria. Mas a Transalvador sabe? Não sabe. E se soubesse aplicaria? Tenho sérias dúvidas. Porque essa “nova onda’ da bicicleta é, como nosso asfalto, uma camada superficial de faz-de-contas. E falhará a médio prazo por conta da superficialidade. Assim como o asfalto.

Quando eu comecei a andar de bicicleta, eu procurei me informar sobre como as coisas funcionavam. Antes. Não consigo entender porque alguém faria diferente. E como isso pode ser usado para responsabilizar as pessoas que “não distribuiram a informação”.

Resumindo: Na imensa maioria dos casos não é o ciclista que se arrisca, é o motorista que o ameaça. É sobre o motorista que devemos tratar. Algum nível de risco está em qualquer lugar, usando qualquer meio de transporte, de qualquer lugar para qualquer lugar. Acidentes acontecem. Riscos podem ser minimizados. Se informe.

Feliz Natal de novo.

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